A experiência: tratamento precoce no Brasil

Victor Hugo Viegas Silva
29 min readAug 16, 2021

Material publicado com apoio da National Geographic. Agradecimentos pelo apoio financeiro e pelo diálogo editorial.

Era um dia de rotina na redação. Estava entrevistando o prefeito de Sítio D’Abadia, cidade de 2800 habitantes na fronteira entre Minas Gerais e Goiás, sobre a situação de COVID-19 na sua cidade até maio de 2021. Perguntei a Weber Lacerda (Solidariedade) qual era o segredo. “Ah, não tem segredo. Aqui a gente faz o básico: máscara, álcool gel, barreira sanitária e tem os remédios também”. Remédios? “Sim, a ivermectina, a azitromicina, aquela cloroquina também. A gente distribui para quem quiser”. Tentei confirmar: “você acha que eles fazem efeito?” O prefeito virou outra pessoa. A fala ficou intensa: “Não é isso, só toma quem quer. Mas eu mesmo usei esses remédios e quando eu peguei fiquei bem. Meu pai tem 90 anos e eu dei pra ele os remédios. Minha família inteira pegou COVID e ninguém hospitalizou. A gente usou os remédios”. Ele não parecia fazer questão que aparecesse esse fato na notícia sobre a cidade, foi uma fala em off. Parecia quase um aperto de mão secreto, para saber se eu também tinha passado pela experiência.

Vi isso depois fora do off na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da COVID. Carlos Heinz (PP) falou na sessão pública que tomava hidroxicloroquina todo domingo, a família inteira dele tinha tomado. Eduardo Girão (Podemos) falou que tomou ivermectina. De onde veio essa gente que fala essas coisas? Para quem eles estavam falando?

Tatiana é uma dessas pessoas. Conheci ela no grupo “Tratamento Precoce Porto Velho”. Perguntada se a ivermectina não tinha eficácia, Tatiana Rachel Correa assevera: “eu sou a prova viva de que isso não é verdade”. Ela é odontóloga e funcionária pública municipal de Porto Velho e me conta que “considerando a exposição que sofro, não ter sido contaminada é uma prova incontestável de que a ivermectina e as vitaminas C e D funcionam para profilaxia”. Ela conta que começou a tomar porque “viu várias reportagens, entrevistas do presidente e uma reportagem sobre a Unimed de Brusque”.

Isildinha Ruiz, 67, do grupo “Ivermectina Salva” diz que “pelo sim, pelo não, irei continuar a tomar, se bem não faz, mal não fará”. Ela toma ivermectina há um ano, de 15 em 15 dias. Quem apresentou a ela foram duas sobrinhas: uma médica, outra biomédica. “Minha família é grande e ninguém ficou doente graças a Deus”. Ela conta que, além da ivermectina, tem uma alimentação saudável, caminha, usa máscara. Mas o remédio a deixa mais tranquila. “Prefiro errar por excesso do que por falta. O medo, a insegurança, o desespero atrapalham muito, as pessoas estão neuróticas”, conclui ela.

Fabricio Pontin, Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade La Salle, me diz que “Os remédios também são uma solução clínica, do seu jeito. Pra quem tá precisando retornar a rotina, o remédio oferece uma explicação, uma justificativa mesmo. A pessoa pensa ‘eu estou voltando pra rotina, mas eu estou me protegendo’. Não acho que é exatamente uma questão de negacionismo. É uma oferta de uma bengala psicológica para aqueles que precisam voltar e não têm outro apoio”.

Aqui cabem alguns dados.

De acordo com o Conselho Federal de Farmácia, houve também um crescimento atípico das receitas de hidroxicloroquina, dos suplementos vitamínicos, dos corticoides e dos anticoagulantes em 2020. A prescrição de ivermectina aumentou 557% entre 2019 e 2020 — de 8 milhões para 53 milhões de caixas. Já a de hidroxicloroquina aumentou 114%, de 963 mil para 2 milhões de caixas. A de vitamina C aumentou 59% de 44 milhões para 70 milhões e a de vitamina D aumentou 81%, de 18 milhões para 33 milhões de caixas. “O motivo é a crença de que esses medicamentos sejam fórmulas milagrosas que previnam ou curem a doença que praticamente parou o planeta”, diz o Conselho Federal de Farmácia.

Em survey realizada por Gabriela Lotta e Michelle Fernandez pelo Núcleo de Estudos de Burocracia (NEB) da Fundação Getúlio Vargas com os profissionais de saúde no Brasil, 30% dos profissionais entrevistados em todas as regiões do Brasil se posicionaram favoráveis a utilização de tratamentos sem comprovação científica “Esse indicador foi muito assustador para nós. Imaginávamos que seria um percentual muito menor. Isso significa que 1/3 deles concorda que o paciente deve ter liberdade para tomar qualquer medicamento e que o SUS deve fornecer”, diz Gabriella Lotta.

Conversamos com pessoas que participam de grupos de Whatsapp em que se reúnem pra debater sobre as medicações e promovem os medicamentos. Também conversamos com vários profissionais da área da saúde que estão prescrevendo esses medicamentos sem eficácia comprovada e pedimos a um voluntário que fizesse uma observação e registro de um grupo de Whatsapp em que esses médicos que concordam com o tratamento discutem casos clínicos e condutas clínicas.

Perspectiva da linha de frente

Antes de começar a conversar a sério com os médicos que fazem os tratamentos, falamos com um médico que está na linha de frente da COVID-19, Gerson Salvador, do Hospital Universitário da USP. Ele me diz que não há motivos para qualquer médico bem formado acreditar no tratamento precoce. Para ele, existem três tipos de médicos que aderiram ao tratamento precoce. “Uma parte dos médicos que tá receitando o kit covid o faz por ideologia política. Uma adesão ao bolsonarismo — acabam promovendo medicamento como uma estratégia política. Outra parte trabalha em serviços que têm protocolos instituídos como municípios em que protocolos que já vêm prontos: médicos mesmo sabendo que os medicamentos não funcionam e não aderindo necessariamente a essa agenda bolsonarista acabam aplicando”. O terceiro, de acordo com Gerson Salvador, seria o mercenário que “sabe que não faz efeito, mas acaba ganhando dinheiro com isso, vendendo consulta, teleconsulta, para orientar as pessoas a usarem esses medicamentos”. “Pode dividir em três perfis, o picareta bolsonarista, o covarde e o mercenário. E não são necessariamente excludentes um e outro grupo”.

Será mesmo?

Conversei com outro infectologista também da linha de frente que acredita no tratamento “imediato”, Gustavo Pasquarelli. Perguntei para ele qual era a saída da pandemia. Ele disse:“Em razão da nova cepa, a P1, acho mais provável que seja por imunidade em rebanho. Claro que a vacina também tem seu papel e é importante, mas a imunidade em rebanho é majoritária. A imunidade de rebanho não é uma estratégia, é uma consequência de qualquer epidemia”. Nessa perspectiva em que a imunidade de rebanho é uma consequência, “a politização em cima da doença e do tratamento são os maiores algozes da pandemia. Os ‘custos’ não são só vidas ceifadas pela morte e sim: fome, pobreza, desemprego, problemas psicológicos, perda de conteúdo escolar, aumento de violência doméstica e suicídios”.

Outra médica que compartilha de um diagnóstico parecido é Alla* (nome fictício), médica radicada no interior do Rio Grande do Sul, que diz ter tratado mais de mil pacientes com ivermectina, hidroxicloroquina, corticóides, dependendo do caso. “Salvei muitas vidas”, afirma, “só não salvamos mais porque essa doença foi politizada. Nebulizei com cloroquina cinco pacientes. Um deles um idoso de 92 anos. Mas não nebulizo mais porque a mídia vai me chamar de assassina. Arriscar meu CRM, minha reputação, ser jogada na fogueira? Eu, não. Agora só nebulizo amigos e pessoas próximas”.

Alla entrou em contato com a reportagem porque sentia que os médicos que defendem o tratamento precoce são injustiçados pela mídia. “Vocês da imprensa são a favor da morte”, me disse ela, “você mata seu avô quando fala mal do tratamento”.

Mas em que ambiente esses médicos como Alla exercem influência? Os grupos de pacientes não são criações espontâneas. Eles são redes de influência feitas para promover interesses.

“Ivermectina é vida!”

Descobri o grupo “Ivermectina é Vida” enquanto estava impactado por uma coincidência: em todos os protestos contra o lockdown em Manaus, no interior de Minas Gerais, no interior de São Paulo e no Rio Grande do Sul repetia-se a mesma coisa: queremos o fim das restrições e… queremos esses remédios. Era coincidência demais que gente tão diferente, de classes sociais diferentes, em contextos regionais diferentes, em contextos políticos diferentes, repetindo a mesma reivindicação. De onde vinha isso?

Para descobrir isso fomos em grupos de Facebook nos quais as pessoas se reuniam em função dos remédios. Apesar de a plataforma ter uma política de conteúdo que coloca um “label” de que não existe tratamento para COVID-19 quando se posta um conteúdo relacionado à ivermectina ou à cloroquina, existem vários grupos com milhares de pessoas dedicados à disseminação do remédio. Em um deles, “Tratamento precoce para pessoas do grupo de risco”, encontrei a divulgação do grupo de Whatsapp relacionado à ivermectina e comecei a me envolver com essa comunidade. O Facebook, procurado pela reportagem para comentar esses conteúdos postados a respeito do tratamento precoce, nos direcionou para os links da sua política de conteúdo, não dando respostas específicas sobre os casos de grupos com milhares de integrantes com “Tratamento precoce” no nome, ou a respeito dos perfis indicados que postavam reiteradamente esses conteúdos. O grupo “Tratamento precoce para grupos de risco” existe desde abril de 2020.

“Quando o Eduardo Girão, por exemplo”, diz Pontin, “fala no Senado sobre a experiência dele com o tratamento precoce, ele está reafirmando uma comunidade cognitiva que se formou ao longo de um ano. As pessoas fizeram investimentos financeiros, cognitivos, afetivos. Criaram comunidades em que têm papéis a cumprir, com os quais se identificam. Quanto mais tempo tu tá dentro, mais difícil você dizer que estava enganado. Isso é típico de qualquer sistema”.

Grupos de pacientes

Participo desde janeiro de 2021 de 8 grupos de Whatsapp voltados para pacientes que discutem tratamento precoce. Antes eles eram voltados em sua maior parte para acolhimento de pessoas com sintomas ou ajudando parentes, hoje são espaços de discussão e agitação antivacina.

As pessoas que entram são variadas. Umas tem interesse em compartilhar experiências, saber onde arrumar os remédios, entender alguma coisa da doença, contam que seus médicos não responderam suas dúvidas ou demandas e precisam de um diálogo mais horizontal ou de médicos diferentes. Outros querem passar adiante o que aprenderam com seus médicos e seu testemunho sobre a boa nova do tratamento. Outros foram introduzidos por um amigo que queria lhe passar segurança e contatos que já haviam passado “pela experiência”. Tem gente que entra pra se informar sobre COVID e vai ficando. Várias pessoas relatam que são ostracizadas por defenderem os remédios — seja de sua família ou de sua comunidade da igreja.

As discussões variam muito, mas tem algumas que são recorrentes. Disseminam-se muitas propostas milagrosas de remédios naturais, protocolos de tratamento variados e quase toda semana surge um novo remédio ou combinação de remédios. A cloroquina ou hidroxicloroquina, nesse cenário, não é nem de longe o principal. Faz-se um coquetel com a bem mais amplamente disseminada ivermectina com os remédios que são as últimas novidades da semana.

A principal discussão nos grupos hoje é a segurança da vacina comparada com a dos remédios. Alguns agitadores, sempre os mesmos, ficam o tempo todo agitando contra as vacinas, tentando criar insegurança e falando para as pessoas continuarem a tomar remédios mesmo que sejam vacinados. A maioria fica em silêncio ou mostra dúvidas genuínas e desconfiança diante dessa agitação, mas ninguém bate de frente. Observei uma única exceção.

Igor Rocha Teixeira é fisioterapeuta e trabalha na linha de frente. A entrada dele no grupo “COVID21 é melhor tratar” foi um acontecimento: ele falou que vacinas funcionavam e o tratamento precoce, não. “Meu principal motivo pra entrar pra debater com as pessoas do grupo”, diz Igor”, foi dúvidas de uma pessoa que considero como uma mãe. Foi a terceira vez que ela me trouxe dúvidas sobre a vacina e veio desse grupo”. Igor não sabia que o grupo era de tratamento precoce e só descobriu depois que entrou. Ele alegou para mim que sofreu ameaças no privado depois de começar a bater de frente no grupo e, por isso, saiu. As pessoas que ficaram entenderam, ao menos em público, como uma “fuga do debate” de quem “não tinha argumentos”.

Esse debate é bem típico da forma como se trata quem bate de frente abertamente com a perspectiva implícita dos grupos. Apesar de ser um grupo aberto, em que acontece acolhimento e alguma discussão é bem vinda sobre métodos diversos de tratamento, existe um limiar em que os organizadores do espaço, aqueles que debatem mais frequentemente, fazem com que a contradição torne o dissidente um inimigo, um infiltrado de esquerda ou da Big Pharma cuja influência é deletéria e contra quem se pode fazer o necessário para retirar do espaço.

Da mesma forma, acontece um recrutamento e uma política de cooptação de quem se mostra mais aberto ou mais vulnerável. Essas pessoas são recrutadas para grupos mais reservados no próprio Whatsapp ou no Telegram, onde se discute com mais profundidade — geralmente sobre vacinas como parte de algo maior — e aí entram as teorias do “globalismo” e das teorias da conspiração como o QAnon.

Médicos Pela Vida

Fui num curso para ver como iam se atualizar sobre a COVID-19 os que escolhiam aderir à visão de médicos que diziam querer “ousar tratar”. Encontrei um lobby da fabricante da ivermectina Vitamedic e conselheiros federais e estaduais aconselhando médicos como evitar processos éticos na sua prática do tratamento precoce.

Em 23 de fevereiro de 2021 foi publicado um Manifesto pela vida assinado pela Associação Médicos Pela Vida divulgando a opinião desse grupo de médicos sobre o tratamento precoce e um curso para médicos que tivessem interesse em se aprofundar sobre o assunto. Pedi para um amigo médico se inscrever e me deixar assistir as sessões chamadas “super lives de atualização” nas quartas feiras às 20h. Na primeira do dia 10 de março de 2021, estava prevista a participação do vice-presidente do Conselho Federal de Medicina. Antônio Jordão, da organização do curso, falou que ele alegou problemas de ordem maior para não poder participar.

O médico camarada que se voluntariou para se cadastrar no curso para que eu pudesse assistir colocou seu CRM, seu estado, criou uma senha e apareceu seu nome completo no site igual a base de dados do Conselho Federal de Medicina.

Assisti às sessões do mês de março. A organização alegava que estiveram presentes nessa cerca de 2 mil médicos. Presentes em quase todos os encontros estavam as doutoras Lucy Kerr e Nise Yamaguchi. Houve uma sessão internacional com médicos do Peru e da Argentina para “compartilhamento de experiências”.

Na primeira sessão de 10 de março, houve uma orientação sobre a utilização da plataforma. Para a minha surpresa, nela apareceu Carlos Trindade, reitor da UniAlfa, declarou que “fomos nós que criamos e administramos a plataforma” do Médicos Pela Vida “usando dados fornecidos pelo Conselho Federal de Medicina”. Ele também afirma que “foi montado um grupo dedicado (nosso) de suporte para os médicos”.

Além de reitor da Unialfa, Carlos Trindade é diretor tecnológico do Grupo José Alves, conglomerado de empresas que inclui o laboratório Vitamedic — principal fabricante de ivermectina no país. A Vitamedic lançou uma nota em maio de 2020 rebatendo a Merck e alegando que a ivermectina tinha efeitos promissores sim contra a COVID-19. Segundo dados da consultoria IQVIA, a venda da ivermectina saltou de R$44,4 milhões em 2019 para R$409 milhões em 2020.

Na sessão de 17 de março, a conselheira federal de medicina pelo estado da Paraíba Annelise Meneguesso conduziu a sessão. Outro presente era Luiz Guilherme Santos, conselheiro federal pelo estado do Rio de Janeiro e corregedor ético do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (CREMERJ), que deu uma palestra sobre o “reposicionamento de medicamentos”. Ele argumenta que o reposicionamento da cloroquina, por exemplo, é um procedimento que “não é curandeirismo e inclusive faz parte da medicina clássica”. O conselheiro disse que “o que era contra a ética médica era prescrever um paracetamol e dar um oxímetro para o paciente morrer sozinho”.

Luiz Guilherme relatou na sua parte do curso que o que tem chegado de processo “aos colegas do tratamento precoce” é sobretudo por problemas de publicidade. E aconselha: “Cuidado na hora de vocês se expressarem nas redes sociais, nessa forma de sensacionalismo e autopromoção. Ninguém gosta de receber uma cartinha do CFM ou do CRM que está recebendo uma sindicância”. Cansei de mandar cartinha pra doutor. Mas nós somos obrigados mediante qualquer denúncia a fazer. E quando a gente faz isso pode soar como uma perseguição e na verdade não é”.

Luiz Guilherme foi procurado pela reportagem para responder sobre sua participação no curso e não respondeu.

Para os médicos que se cadastram e participam do curso também é disponível a opção de aparecer no catálogo do site. “Os colegas comentam que é chamariz de cliente aparecer no site” diz Alef Lamárk, médico e youtuber. “Mas pacientes meus me contam que, apesar de parecer um ativismo pelo tratamento precoce, as consultas são cobradas — entre R$500,00 e R$1000,00. Aí fica difícil”.

Fui conferir se era assim mesmo e entrei em contato com alguns dos médicos que disponibilizam o nome. Um deles é Matheus Drummond. Infelizmente estava sem vagas, mas tinha uma explicação bem clara de como funcionava o esquema: R$500,00 a teleconsulta mais o acompanhamento diário, com exames e receitas digitais.

Entre médicos

Mayra Pinheiro, diretora da Secretaria de Gestão e Trabalho e Educação em Saúde do Ministério da Saúde (SGTES) em uma live em 14 de abril, divulgada pelo Conselho Regional de Medicina (CRM) do Amapá, relata estar sob ataque: “nesse momento em que a gente entra aqui na live, eu acabo de receber uma intimação do Ministério Público do estado do Amazonas que abre inquérito contra mim e outros gestores porque nós orientamos o tratamento precoce no estado do Amazonas para o enfrentamento da pandemia”, diz aos presentes na live, grupo que incluía diversos “influencers” do tratamento precoce, “mas a gente segue certo que todas as ações que nós fizemos para salvar vidas, independente da postura de grupos militantes que não têm como valor maior a vida, não vão ceder às pressões, a gente não vai desistir do bom combate”. Mayra se referia à intimação que recebeu do Ministério Público Federal do Amazonas, à qual respondeu com testemunho confirmando as suspeitas de que havia organizado uma visita, em janeiro de 2021, para promover a cloroquina antes do estopim da crise em Manaus.

Entre os presentes na live que faziam parte desse grupo referido como “a gente”, mas não citados na divulgação, estava a anestesiologista e fundadora dos grupos “Entre Médicos”, Luciana Cruz. Ao final da live, Luciana relatou que achou muito grave o processo que eles estão sofrendo, que “é algo que atinge a todos os colegas; eles querem nos intimidar. Esse foi o segundo golpe no dia ao nosso grupo, houve o primeiro com a Michelle Chechter, com uma matéria muito maldosa da Folha de S. Paulo”.

“A gente vai fazer alguma coisa, conversar com a Dra Mayra, com a Dra Chechter, a Eliane Scherer também sofreu uma matéria muito agressiva por ter feito as nebulizações em Camaquã e não podemos deixar fazer isso, hoje são com elas e amanhã somos nós. Vou conversar com a doutora Mayra e nós podemos fazer uma pequena comissão. Unidos, a gente não perde a coragem e não perde a motivação. A gente sabe a quantidade de pessoas que estamos ajudando e ainda temos que passar por isso”. Michele Chechter foi revelada pela Folha de S. Paulo como uma das médicas que nebulizou pacientes com hidroxicloroquina em Manaus em fevereiro desse ano.

Michele Chechter não é a única do grupo Entre Médicos que aplicaa nebulização. Nas mensagens de um dos grupos de Whatsapp do #EntreMédicos, observamos vários médicos que relatam estar realizando em seus pacientes a prática não aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).

20/03/2021

“Pessoal .. ontem minha mãe saturando de 90–92%

Muito cansada, falando com dificuldade.

Ela mora a 800km de distância. Meu padrasto trouxe ela às pressas pela estrada.

Ao chegar fiz duas nebulizações com hidroxicloroquina no lapso de 1 hora e agora pela manhã mais uma.

Saturando a 99%. Dormiu a noite toda bem, sendo que há 5 dias estava sem dormir.

Fora isso, estou administrando bicalutamida que já comecei ontem. É absurda a diferença com as nebulizações com hidroxicloroquina, isso que nebulizei só com o aparelho, sem O2”

23/03/2021 Médico 4: “Sobre a Nebulização com HDQ. “ Eu estou no 8º paciente, todos bem, sem nenhum efeito colateral. O que percebi foi uma eficácia maior do Reuquinol em relação ao manipulado.”

21/04/2021: Médico 1: “Sou totalmente a favor da HCQ. Faço reumatoped há 30 anos, então conheço a droga há 30 anos. E tenho gostado dela via Inalatória também. Não temos o respaldo do CFM mas vários colegas médicos e de saúde me procuram pra orientação, nesses eu faço sem stress, a maioria quer fazer. Claro que temos que ter cuidado mas em amigos, eu mando ver”

Médico 2:”’Também já fiz e concordo com vc. O procedimento.dá excelentes resultados. É puro tabu”.

Em uma das interações, um médico de Goiás indica para outro uma farmácia de manipulação em que se consegue hidroxicloroquina manipulada para nebulização. O número indicado confirmou que manipulava hidroxicloroquina em 200mg para 7,5ml em formato de filetes para nebulização e que estava “vendendo muito para Goiânia”, uma cidade a 170 km por encomenda. Tratava-se de uma farmácia de manipulação em Goianésia.

Carine Petry, médica do sono, otorrinolaringologista e também fundadora do “Entre Médicos”, passou esse recado para os médicos desse grupo que trocavam experiências sobre suas nebulizações:

“22/04/2021: Recado da Conselheira do CFM

Dra Yascara

Colegas . Não usem cloroquina nebulizada , mesmo em solução manipulada . É considerado uso experimental e só pode em protocolo de pesquisa . Não só no Brasil como em todo lugar . É arriscado se tiver problema você se expõe a processo”.

Carine Petry, Yascara Lages e o Conselho Federal de Medicina(CFM) não responderam a pedidos de comentário da reportagem.

Perguntei a Bruno Caramelli, professor da Faculdade de Medicina da USP, por que teria acontecido essa recomendação informal, uma vez que o CFM vem permitido a “autonomia médica” irrestrita. “Parece ser só pelo medo da cobertura negativa da mídia e pelo medo do processo, como está escrito. É exatamente isto que eu busco. Que eles condenem tudo o que não funciona. Só assim os médicos não recomendarão mais”, diz Bruno Caramelli, que entrou com representação no Ministério Público Federal para obrigar o Conselho Federal de Medicina a recomendar que não se façam tratamentos errados. Ele arremata: “É criminoso. Há um milhão de etapas antes de usar em nebulização em pessoas. Deve haver estudos em laboratório, analisando diluição, estabilidade, depois testes em animais… um mundo de coisas”.

Para André Bacchi, farmacologista e professor da Universidade Federal de Rondonópolis, a nebulização de hidroxicloroquina “é o ápice de todos esses problemas que vêm acontecendo”. Desde o problema ético de o uso não ser feito em um contexto de pesquisa experimental aprovado, até o problema da comprovação da eficácia da cloroquina, que não há, passando pelo problema da forma farmacêutica, que não é adequada para a via respiratória. “Você está abrindo mão de tudo em nome de uma suposta autonomia médica, bancando algum tipo de heroísmo, mas sem racionalidade.” Ele conta que a hidroxicloroquina, quando usada na forma de nebulização, apresenta os seguintes problemas: “o comprimido de hidroxicloroquina é feito para via oral, ou seja, além do princípio ativo (hidroxicloroquina), há também os excipientes, que são aqueles outros componentes que dão a forma pro comprimido, a coloração, a conservação. Todo comprimido tem o seu princípio ativo e tem esses outros componentes juntos. Entre estes excipientes, podemos encontrar dióxido de titânio, estearato de magnésio, lactose, amido e por aí vai, que são utilizados para absorção via oral para que o comprimido possa passar pelo trato digestório e ser adequadamente absorvido. Então, dependendo do que você nebulizar, se você pegar um comprimido desse, que é feito para via oral, e o utilizar pra diluir e fazer uma inalação, você vai fazer a inalação não apenas de hidroxicloroquina, mas também desses outros componentes que estavam no comprimido, alguns dos quais podem provocar reações inflamatórias e dano aos pulmões.”

O grupo “Entre Médicos” tem forte presença nas redes sociais: tem mais de dez grupos lotados no Whatsapp e um perfil fechado no Instagram. Para conseguir acessar o perfil no Instagram, o grupo informa que só mandando foto com o número de registro do Conselho Regional de Medicina. Até a escrita dessa reportagem, 5244 médicos haviam passado pelo procedimento para ter acesso aos conteúdos exclusivos do perfil e estavam aprovados como “seguidores”.

E que conteúdos são esses? São principalmente conteúdos “didáticos”. Há posologias de medicamentos como corticoides e anticoagulantes. Prints de Whatsapp que tratam de experiências clínicas. Lives gravadas de forma caseira. Em uma delas, Michelle Chechter conta sua experiência fazendo tratamento precoce com gestantes e puérperas. Repercutindo a experiência, Angélica da Silva Figueiredo comenta que já tratou 8 grávidas no mesmo regime:

Outro material didático do Entre Médicos é uma live em que Priscila Coelho Rabelo, ginecologista e obstetra, faz uma proposta de tratamento precoce para gestantes. Pedi para Melania Amorim, médica ginecologista e obstetra, professora associada doutora de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade Federal de Campina Grande, explicar o conteúdo da orientação produzido por Priscila no Instagram para outros médicos. “No primeiro trimestre, ela orienta fazer nitazoxanida e hidroxicloroquina e, no segundo e terceiro, ivermectina na grávida padrão de até 90kg com 2 comprimidos de 15 em 15 dias”, diz Melania, “Isso aí a fonte é ‘VOZES DA MINHA CABEÇA’”.

“Que as gestantes têm maior risco já se sabe há tempos e essa é a minha luta”, reitera a professora, “para que sejam incluídas como grupos prioritários de vacinas e tenham políticas públicas efetivas. Mas isso que esse grupo propõe é um teste inconcebível com uma população vulnerável. Para ser aprovado, teria que ter tido a efetividade demonstrada fora da gravidez. Para ser implementado tal protocolo, teria que passar por um comitê de ética em pesquisa tendo um forte rationale que seria ter tido a efetividade demonstrada fora da gravidez”. “Caso contrário”, diz Melanie, “voltamos à era do Talidomida”.

“O presidente claramente investiu em uma estratégia de empurrar o povo para as ruas supondo que viria a imunidade de rebanho para garantir a retomada mais rápida das atividades econômicas — e isso à custa de promover aglomerações, desincentivar uso de máscaras, não comprar vacinas, negar a gravidade da pandemia, propor e fazer propaganda de medicações sem eficácia”, diz Melanie Amorim. “Se você finge que isso não está acontecendo, está alinhado com ele, se você propõe essas drogas, está alinhado com ele”.

Priscila Coelho Rabelo não respondeu a pedidos da reportagem, por Whatsapp, ligação e Instagram, para que comentasse o tema.

Outro material da “Entre Médicos” disponível para os que mostram seu CRM às administradoras do perfil é uma live chamada “COVID para crianças: nossa prática a beira do leito”.

Nessa live, visualizada mil vezes e disponível no Instagram, é proposto, baseada na suposta “experiência no leito” das palestrantes: hidroxicloroquina em crianças, até mesmo em bebês menores de 6 meses; corticoides para crianças mesmo precocemente; enoxieparina baseada em exames. Conversei com Renato Amorim, pediatra e estudioso da Medicina Baseada em Evidências, sobre a live e ele me disse: “roteiro para uma escalada de iatrogenias”. Iatrogenia é a consequência negativa gerada por um ato médico. “É na melhor das intenções você ter uma concepção errada sobre a doença, você entrar numa espiral de tratamentos errados porque você errou o diagnóstico e o tratamento vai levar a complicações e a doença vai continuar acontecendo e você julga que o sintoma não melhorou e entra com outras medicações, essas medicações por sua vez vão ser baseadas em um diagnóstico errado também e por aí vai”. Ele explica que dar esses remédios sem teste de eficácia e segurança em pacientes que tendem a evoluir bem é mais erro médico do que “precaução”.

Priscila e as médicas da live “COVID na criança” não estão sozinhas em suas recomendações de hidroxicloroquina para gestantes e crianças. O Ministério da Saúde em agosto de 2020 propôs uma orientação para que gestantes e crianças tomem esses mesmos remédios sem comprovação de segurança e eficácia. Pode ser conferido no antigo site do Ministério da Saúde. O protocolo pode ser conferido no link: http://antigo.saude.gov.br/images/pdf/2020/August/12/COVID-11ago2020-17h16.pdf

Protocolo do colapso

Quem é Luciana Cruz e qual sua influência? A médica formada pela Universidade Federal do Pará com residência em anestesiologia se notabilizou com a chamada “experiência de Belém” em maio de 2020. Ela intermediou junto a Roberto Zeballos, imunologista ligado ao Hospital Albert Einstein, um protocolo para “hospitalizar fora do hospital”. Esse protocolo foi chamado de “protocolo colapso” e permitiu a um grupo grande de médicos prestarem assistência a um número de pacientes que estavam sem possibilidade de conseguir assistência nos hospitais nosistema de saúde colapsado em Belém. O protocolo original incluía um corticoide, dois antibióticos e um anticoagulante, alguns dos quais estavam sendo testados mundialmente pela sua efetividade, mas cuja segurança e eficácia ainda não haviam sido assegurados. Além disso, Zeballos e Luciana estabeleceram procedimentos para tratamento de pacientes “precoces” (nos primeiros sintomas) que precisavam de algum acolhimento com cloroquina, ivermectina, zinco e vitamina D. Esse protocolofoi adotado por esse grupo de médicos ligado a Luciana Cruz e Zeballos, mas também pela Unimed Belém.

O fato de a rede privada estar reproduzindo a proposta dos médicos foi considerado uma evidência de que se tratava de um tratamento eficiente. Em uma live articulada por Luciana Cruz, Vânia Brilhante, infectologista e cooperada da Unimed, diz que “após uma videoconferência com o pessoal da Prevent, decidimos tratar os leves”. Após sete dias a gente saiu do nosso colapso. Depois que resolvemos, ficamos tranquilos e estamos ajudando outros estados com nossa experiência”. O sucesso relatado por Vânia teve apenas dois infartos “provavelmente não relacionados à cloroquina”.

O “protocolo colapso” foi depois formalizado no artigo “científico” “Resolutive results with oral corticosteroids for patients with COVID-19 in pulmonary inflammatory phase. Successful outpatient experience during the collapse of Belém do Pará Health System — Brazil”. Esse estudo foi muito divulgado na rede de pacientes e médicos do tratamento precoce como “prova” que os médicos influencers do tratamento, como Zeballos e Luciana Cruz — autores do estudo –, estavam certos desde o começo. Ele propõe uma série de medicamentos que foram popularizados na rede dos médicos para pacientes de COVID-19.

Pedi a Bruno Caramelli que avaliasse o artigo. Ele afirmou que esse estudo, em primeiro lugar, não foi aprovado pelos pares. Em segundo lugar, o estudo tecnicamente não existe, pois não foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) na Plataforma Brasil — portanto tecnicamente nem deveria ter sido iniciado. Por que não poderia ter sido feito? “Não poderia ter sido feito, pois não foi aprovado. Tem uma série de erros metodológicos e éticos no desenho deste estudo que poderiam ter sido detectados antes, exigindo correção. Daí outro estudo, correto, poderia mostrar outro resultado”, diz Caramelli.

No artigo se diz que: “as medicações usadas foram adaptadas de um estudo criado por Roberto Zeballos com Marcelo Amato para pacientes hospitalizados” em 2020. Amato foi consultado pela reportagem e disse que “apenas teve conversas informais com Zeballos sobre a utilização de corticoides em pacientes com COVID, nada além disso”. Roberto Zeballos não respondeu a pedidos de entrevista da reportagem por Whatsapp, Instagram e telefone.

Como exemplo de prática médica inspirada pelo estudo, reproduzo uma mensagem produzida no grupo #EntreMédicos de Luciana Cruz e Carine Petry:

“Medicamentos que são indispensáveis ter hoje no enfrentamento a Covid-19 novas cepas:

. Ivermectina

. Hidroxicloroquina ou cloroquina cp e para nebulização

. Nitazoxanida

. Predsnisona

. Prednisolona

. Aas

. bromexina xarope e ou ambroxol

. Colchicina

. Dutasterida

. Espironolactona

. Flutamida

. Enoxaparina

. Xarelto

. Dexametasona injetavel IM

. Depo medrol injetavel IM

. Azitromicina

. Doxiciclina

. Claritromicina

. Clavulin

. Ceftriaxone injetal IM

. Aerolin spray

. Clenil spray

. Respiron para fisioterapia domiciliar

. O2 SOS”

Consultei o infectologista Gerson Salvador sobre os remédios preconizados nessa lista de “remédios indispensáveis” e ele me disse que “de todas as drogas aí citadas, os que têm benefício possível são: a colchicina. O possível benefício foi aferido num estudo chamado Cocorona, que foi um ensaio clínico, randomizado, bem desenhado, em que ele mostrou uma diferença no desfecho de internação; é um uma pequena mudança, porque precisava tratar no estudo: a cada setenta e sete pacientes tratados com a colchicina evitava um — o que é um benefício muito pequeno; uma segunda droga que eu tenho que dizer que é um potencial benefício é a budesonida inalatória. Com número pequeno de pacientes, mas mostrou eficácia. Pode ser dado pra pacientes ambulatoriais. Do ponto de vista de tratamento ambulatorial, acabou aí. Os corticoides têm benefício, mas apenas teve mudança em pacientes internados com necessidade de oxigênio suplementar. Em outros grupos, os corticoides dados precocemente além de não terem mostrado nos estudos clínicos fazer diferença no desfecho, tem um potencial malefício, porque o corticoide diminui a ação da nossa própria imunidade e o vírus provavelmente vai se multiplicar com maior liberdade”.

A trajetória de Luciana Cruz não acaba aí. Depois desse momento do Pará retratado pelo artigo em que é coautora, ela foi descrita para jornalistas do projeto Comprova como uma das organizadoras do site covidtemtratamentosim.com.br. Paulo Porto a descreveu como “conselheira do site”. A revista Veja a retratou em reportagem de julho de 2020 como parte de um “conselho médico científico” organizado por Carlos Wizard para defender o tratamento precoce em julho de 2020. Ela também foi descrita como parte desse conselho de Wizard pelo site neofeed e pelo próprio Carlos Wizard em entrevista para a revista Istoé. Em setembro de 2020, ela discursou no evento “Brasil Vencendo a COVID” e dizendo que “éramos mais de dez mil médicos”. Hoje ela está à frente do movimento Entre Médicos.

A experiência de Natal

Albert Dickson é deputado estadual do Rio Grande do Norte pelo PROS e pratica o que ele chama de “telemedicina gratuita” pelo Youtube. Ele tem um canal com 201 mil inscritos na plataforma de vídeos. A telemedicina funciona da seguinte forma: a pessoa se inscreve no canal, tira um print, envia para o deputado, podendo, asssim, ser atendida “gratuitamente”. No atendimento, ele oferece uma receita padronizada com determinados medicamentos.

“Albert Dickson tem um histórico de fazer da saúde seu palanque eleitoral”, diz Daniel Menezes, professor de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. “Ele e Fernando Suassuna começaram a divulgar a ivermectina aqui em Natal quando teve aquele estudo in vitro. Ele disse que estava tomando, que a mulher dele estava tomando, que os filhos estavam tomando. Muitos áudios começaram a circular nos grupos de Whatsapp. A perspectiva era a seguinte: quem começa a tomar a ivermectina em Natal são os mais ricos. As pessoas que têm dinheiro. Aí, os pobres ficam sabendo também pelas entrevistas e pelos grupos de Whatsapp. Ele foi fundamental nesse pontapé inicial aqui em Natal. Ele se elegeu dando óculos e fazendo consultas médicas em sua área. Ele se elegeu vereador pela primeira vez assim”.

Daniel conta que outros médicos que divulgam a ivermectina eram mais sinceros — não em relação aos dados da ivermectina, que eram fraudulentos, mas em relação a um fato: não tinha base científica o que se falava de tratamento. “Quando perguntavam sobre isso, era na bucha que falavam: não tem fundamento científico. Mas tem fundamento na minha experiência como médico, na minha observação”, diz ele. “O médico que é ‘ivermectiner’ tem uma forma distinta de lidar com o conhecimento, mais amparada na observação direta”.

“Já o Albert Dickson é diferente, ele fala como se tivesse fundamento científico”, conta o professor. “Ele foge das perguntas que mostram que o negócio não funciona ou mente diretamente mesmo”.

Albert Dickson não respondeu a chamados da reportagem realizados por telefone e Whatsapp.

As plataformas como canais de acolhimento para o tratamento

Além do discurso contra os inimigos, aparece como elementos importantes o acolhimento e uma resposta imediata para as dúvidas de quem assiste as lives semanais de Dickson. Pessoas perguntam a respeito da posologia de remédios, de segurança e de eficácia, e Dickson responde sem qualquer dúvida. Perguntei ao YouTube se eram adequados à plataforma vídeos recomendando tratamento que se dizia eficaz contra a COVID-19. Em resposta às minhas indicações, 13 vídeos do canal de Carla e Albert Dickson foram removidos. No entanto, uma busca rápida no canal mostrou que ainda restam dezenas de vídeos produzidos pelo canal com “Ivermectina” e “Tratamento” no título. O site Social Blade, consultado em 5 de maio de 2021, mostra que o canal com esses vídeos, além de ter audiência de 90 mil visualizações semanais, são monetizados e geram cerca de R$1900,00 mensais para o casal de deputados.

Não é o único YouTuber que vem produzindo material sobre o tratamento precoce e perdendo vídeos de uma forma ou de outra. Alexandre Garcia é outro que vem voluntariamente escondendo e deletando seus próprios vídeos O estúdio de análise de dados Novelo Data levantou que de 426 vídeos foram escondidos ou deletados do seu canal e destes 426 apuramos que pelo menos 20 tinham “tratamento precoce”, “cloroquina” ou “ivermectina” no título. Leda Nagle, outra influenciadora relevante no ecossistema do tratamento, fez outra limpeza de acordo com o estúdio Novelo Data. Leda deixou privados 50 vídeos e apagou voluntariamente 3, sendo que todos os deletados relacionados a tratamento precoce.

Da mesma forma, o Instagram nos informou que tem uma política de combate a conteúdos desinformativos relativos à saúde que consiste principalmente em colocar “labels” ou adesivos informativos no conteúdo e reduzir seu alcance. Informados que o perfil “Entre Médicos” tinha conteúdo em que se orientavam médicos a prescrever especificamente a gestantes e crianças, sem eficácia comprovada, nem teste de segurança, a plataforma nos informou sobre suas políticas de moderação de conteúdo sobre saúde que podem ser verificadas nos links disponíveis para todos os usuários.

Albert Dickson também administra alguns canais de Whatsapp: “Ivermectina é Vida”, “Ivermectina Salva!”, “Ivermectina São Paulo”, “Ivermectina Rio Grande do Sul”, “Ivermectina RS”. A assessoria de comunicação da plataforma Whatsapp não respondeu aos questionamentos a respeito da possibilidade de se realizar algum monitoramento ou controle desse tipo de canal e conteúdo em grupos públicos.

Os motivos do apelo

André Janones, deputado pelo Avante e influenciador digital, tem se colocado a favor das vacinas e contra o tratamento precoce nas suas redes sociais. Janones tem cerca de 300 mil seguidores no Facebook, onde faz postagens e dialoga com as pessoas sobre temáticas de saúde e política. “Eu tenho mais ou menos o mesmo público que o presidente nas redes sociais”, diz Janones, “mas como o presidente escolheu o caminho do caos, eu escolhi o contrário”. Perguntei a ele como era a experiência de conversar sobre a pandemia com as pessoas. “A vacina foi mais fácil, é muito fácil desmentir as fases levantadas de que ‘o primo do porteiro do prédio da minha amiga foi vacinado e saiu voando’ porque nunca é nada razoável e com fontes”, conta o deputado. “Agora o tratamento precoce é mais complexo, uma vez que as pessoas costumam usar a própria experiência pra atestar eficácia. É muito comum ler ‘eu te apoio, mas aqui em casa tomamos e estamos todos bem, então discordo’”.

Letícia Cesarino comenta que “antes você confiava nos especialistas. Hoje tem esse fenômeno: gente que fala ‘eu não acredito no sistema, na mídia, no mainstream, eu acredito no que eu vejo, na minha experiência pessoal’ e como a internet é focada no eu, ela tende a confirmar esse tipo de epistemologia”. Por isso, conclui “a evidência última de um tratamento é a própria pessoa ser a cobaia. É totalmente solipsista. É uma doença que atinge 7 bilhões de pessoas em contextos diferentes. É como se não existisse sistema, como se não existisse coletivo, como se fosse tudo na pessoa o teste de realidade”.

Mas existe algum critério. Janones conta que “quando eu estou falando do auxílio, as pessoas me dão total credibilidade, entre acreditar em um YouTuber, em um jornal ou em um deputado, elas escolheram acreditar em um deputado, até porque a fonte está lá na Câmara”. Mas quando a situação é o auxílio, a relação muda e “o médico tem N vezes mais credibilidade que eu, uma vez que as pessoas entendem que é a função dele e ele se prepara para aquilo ali”.

Não é com qualquer médico. Maria* (nome fictício), de Três Lagoas (MS), conta que um paciente não aceitou sua conduta de não receitar o tratamento precoce. Ela teve que chamar a polícia. “O paciente chegou com um papel do exame do COVID detectável na mão falando que queria as medicações. Ele disse: ‘não doutora, eu sei que a senhora estudou pra isso, mas eu quero que a senhora me prescreva’”. Ele insistiu tanto, frente à resistência da médica em recusar, que a polícia teve que ser chamada por “perturbação do trabalho”. Gabriella Lotta comenta que “muitos profissionais relatam que a relação com usuários ficou muito mais difícil. O contexto geral de stress pela doença, aumento da demanda, falta de protocolo e de informação adequada, além do caos criado diariamente pelo presidente, também dificulta a ação deles. Profissionais relatam crescimento de hostilização dos usuários, seja porque estão desconfiados dos profissionais, seja porque têm medo deles ou por desejarem tratamentos indicados pelo presidente e que não possuem comprovação científica. Eles exemplificam suas dificuldades citando situações em que pacientes gritam exigindo cloroquina nas unidades de saúde. Também citam cobrança por atendimento mais rápido, por garantia de medicamento, equipamento, vaga na UTI etc”.

Letícia Cesarino comenta que isso é um fenômeno típico do neoliberalismo na saúde: “o cliente quer receber o que ele tá pagando, mesmo que seja SUS. Mesmo no serviço público, ele vê o Estado como um provedor de serviços. Eu pago meus impostos eu quero do meu jeito — que é a personalização exacerbada na internet. É a noção do cliente aplicada à medicina”.

De acordo com o mesmo estudo citado no início da reportagem, do NEB, a. respeito da situação dos profissionais de saúde na pandemia, 72% dos trabalhadores da área da Saúde entrevistados não receberam nenhum treinamento durante esse período. “O cenário de despreparo para lidar com a Covid-19 permanece desde o começo das nossas pesquisas, em abril de 2020. Como falta esse treinamento, a consequência é que os profissionais estão: 1) buscando conhecimento por vias próprias (que podem não ser confiáveis); 2) aprendendo uns com os outros ; 3) adequando suas ações com base na tentativa e erro, na experimentação”, afirma Gabriella Lotta, que arremata: “se a informação não vem do governo, pode vir de qualquer lugar”.

Enfrenta

Aléf Lamark, médico e youtuber, diz que produziu o vídeo “Ivermectina: qual a melhor hora para tomar” por demanda do público. “Eu recebi muitos comentários, pessoas com dúvidas sobre isso, qual era a melhor hora pra tomar ivermectina e resolvi responder essa dúvida. Eu me considero um divulgador científico, um educador em saúde. É melhor responder as dúvidas com embasamento científico do que vir uma pessoa sem fundamento responder”. Ele também convive, nos grupos de Whatsapp, com Albert Dickson, Isildinha Ruiz, Tathiane.

Silvia Viana, professora de sociologia da Fundação Getúlio Vargas, diz que “a crítica à prescrição desses remédios aponta para o alvo errado: o assim chamado ‘negacionismo’, cuja origem estaria na esperteza dos que buscam algum benefício pessoal, político ou econômico — um problema moral, portanto; ou estaria em seu oposto, na ignorância de dados e procedimentos científicos, um déficit cognitivo. É claro que as duas posturas existem e coexistem mas não explicam a generalidade do fenômeno, menos ainda sua persistência ante o contra-ataque maciço de ‘esclarecimento’ e ‘denúncia’ de parte considerável do poder constituído. Ignora-se, por exemplo, que aqueles que prescrevem também tomam e prescrevem para pessoas que amam e correm riscos profissionais e jurídicos, dos quais estão cientes. O que se estaria negando, então? A ineficácia dos remédios. Será mesmo? Basta uma escuta um pouco mais atenta para se dar conta de que o uso desses medicamentos não se fundamenta no não saber, e sim na certeza de sua incerteza: ‘pelo sim, pelo não’. A chave mágica que abre as portas para o uso dessas medicações é precisamente o ‘talvez’, um tiro no escuro contra um monstro invisível, contra o qual ’não custa tentar’”.

“Mais que a cura ou a prevenção”, diz Silvia, “a hidroxicloroquina e os demais remédios conferem alívio psíquico para a impotência profissional de médicos diante da doença e, por outro lado, a ‘coragem’ necessária para aqueles que ‘não tiveram alternativa’ e foram obrigados a encarar a produção e a circulação de mercadorias, essas sim, muito mais que o vírus, tidas por todos como uma fatalidade inescapável”.

Alterações

Gerson Salvador estava anotado como trabalhador do “Hospital das Clínicas da USP”. Na verdade ele trabalha no “Hospital Universitário da USP”. Correção às 22:54 de 15 de agosto de 2021.

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