0 2013 goianiense no transporte coletivo e a sua derrota

Victor Hugo Viegas Silva
9 min readOct 18, 2020

Houve um 2013 que não se reduziu a um protesto cívico, cooptado pela direita. Nossa ruptura e derrota se deu em outro momento, por outros fatores.

19 de junho de 2013. Nós da Frente de Luta Contra o Aumento havíamos suspendido a passagem antes de São Paulo no dia 11 de junho, com cinco manifestações combativas. Tínhamos uma manifestação enorme marcada para o dia 20 de junho. O aumento estava apenas suspenso, queríamos o decreto definitivo. No meio da reunião tensa, cheia de gente desconfiada uma das outras, aparece o anúncio: tinha sido dado. Paulo Garcia (PT) e Marconi Perillo (PSDB) haviam revogado definitivamente o aumento da tarifa um dia antes do nosso grande protesto. Mas tínhamos outras pautas além do aumento. Queríamos repensar o contrato de concessão, queríamos de volta o dinheiro da tarifa pago injustamente. Queríamos um monte de coisa e o protesto estava mantido. Não iríamos fugir das ruas. O que aconteceu no dia 20 simplesmente não estava nas nossas expectativas: a extrema direita coxinha tomou conta. Trechos relato da época:

“Houve um policiamento constante do discurso da manifestação. Não se podia falar de transporte, não se podia falar de conflito, e o hino nacional tocava o tempo todo! Ao mesmo tempo que rolavam inúmeros arrastões da playboyzada contra os impostos”.

“Ironicamente, a centralização do discurso possibilitada pela comissão de carro de som foi a única coisa que garantiu que a organização de luta pelo transporte tivesse alguma voz, frente aos zumbis do “sou brasileiro com muito orgulho, com muito amor (…)”

“Finalmente, eu vi policial distribuindo flores para os manifestantes e estabelecendo uma comunicação extremamente eficiente no sentido de enquadrar sem precisar bater.”.

“Discurso fortíssimo de minoria vândala que “felizmente” foi contida pela própria manifestação. Os coxinhas de branco na manifestação gritavam “sem violência” apenas ao ver pessoas da periferia, com roupa mais desgastada ou pele mais escura”.

É verdade que depois desse dia, a minoria vândala, com roupa mais desgastada e pele mais escura não conseguiu ser com eficácia o sujeito central nas manifestações centralizadas “cívicas” de Goiânia e superar o cerco da polícia. Fomos dispersados pela polícia e pela extrema direita. Acontece que ao dispersarem a minoria radical e radicalizada, ela se democratizou e se generalizou por toda a cidade. O 2013 radical, proletário, continuou firme e forte no cotidiano do transporte goianiense. Trabalhadores contra as empresas de transporte, estavam postos os sujeitos em luta. Mas de que forma?

Heranças

O movimento que conseguiu suspender o aumento da passagem passou algumas lições para o conjunto dos trabalhadores na luta do transporte da cidade. Primeiro, era possível resistir à polícia com inteligência. Segundo, não precisávamos entrar no terreno deles, eles é que precisavam entrar no nosso terreno. Terceiro, era possível organizar um protesto sendo ninguém, sendo uma pessoa comum. As técnicas de organização de protesto eram compartilhadas nas reuniões abertas da Frente de Luta, nas assembleias de início e fim do protesto e nas discussões e decisões assembleiárias sobre o que fazer em alguns dos protestos que havíamos realizado. Mais do que um desejo utópico de democratismo infinito, o principal objetivo de alguns de nós com a democratização era pedagógico, que as pessoas se apropriassem das técnicas de organização ao entenderem seu processo. Isso porque a manifestação não era um fim em si mesmo — para alguns de nós o protesto era pra ser um momento dentro um processo mais profundo de organização popular contra as empresas e contra o Estado. Expliquei nesse texto como isso também acontecia no próprio cotidiano de mobilização para os protestos e organização das atividades cotidianas da Frente de Luta. Fazíamos partes de um processo em que “a “massa desorganizada” convocada de forma fragmentada ia ganhando um corpo social”.

Essa elaboração não foi tirada da nossa cabeça. Ela foi tirada da forte tradição de revoltas espontâneas do transporte coletivo de Goiânia em um sistema que

“Para muitos usuários, o momento de entrada no ônibus é o momento que representa a anulação da sua individualidade e a inserção uma massa informe, passiva, sujeita aos caprichos de um conjunto de gente que não compartilha da sua situação. A regra é o sentimento de raiva, de impotência, frustração”.

E ao mesmo tempo, ao iniciar-se a revolta do transporte, esses sujeitos envolvidos na revolta;

“Algumas vezes, quando há um atraso excessivo dos ônibus, os passageiros paralisam a entrada e saída de ônibus. Aí, existem duas instâncias da atividade. Na primeira, se reivindica uma alteração imediata, como a chegada de dois ou três ônibus em todas as linhas para abarcar de forma humana as pessoas aglomeradas. Na segunda, quando a revolta é maior, inicia-se uma quebradeira generalizada tanto do terminal quanto dos ônibus presentes. Jovens, velhos, mulheres e homens, todos participam igualmente das ações. De qualquer forma, sempre que um terminal é paralisado os participantes são caracterizados como vândalos violentos e reprimidos brutalmente. A repressão se inicia ali, com a paralisação do terminal. A quebradeira ou não dos ônibus é um ponto a mais na radicalização, mas não é o fundamental. Geralmente, depois das paralisações, o serviço melhora sensivelmente por alguns meses”.

A proposta que percebo hoje que estávamos desenvolvendo era tornar o espontâneo algo que confluísse com uma rede de organizações populares capazes de dar um corpo político e superasse a fragmentação. E nisso construir um movimento social em torno do transporte coletivo. Tínhamos a tecnologia em mãos e ela havia sido, de certa forma, socializada com bastante gente durante o processo de luta de 2013. Isso teve suas consequências.

O verão quente de 2014

Descreve o Coletivo Tarifa Zero Goiânia:

“Porém, do final de Janeiro até meados de Abril deste ano, uma situação completamente nova vem se estabelecendo: em diversos pontos da cidade, sobretudo em terminais de bairros da periferia; uma série de manifestações e paralisações espontâneas tem ocorrido. A novidade não é a ocorrência desses protestos espontâneos, que existem desde que há um sistema de transporte em Goiânia, mas a frequência da sua ocorrência e a sua continuidade em vários lugares. (…)

A primeira manifestação data do dia 16 de Janeiro e a última de que se tem conhecimento — até à finalização da redação deste texto — foi a que ocorreu no dia 15 de Abril, sendo que durante estes três meses foram mais de 30 manifestações espontâneas”.

Como eram esses protestos? Tive a oportunidade de fazer uma participação observante em alguns deles. Uma experiência descrevi aqui. No Terminal da Bíblia, onde foi possível fazer uma observação concreta, houveram duas experiências e um claro desenvolvimento entre as duas.

Na primeira, uma mulher desesperada se jogou em frente ao ônibus e formou-se uma coletividade que paralisou por horas o terminal de forma mais ou menos desorganizada em grupos informais até que a repressão dividiu a paralisação em um protesto e paralisação de terminal. O repertório de cantorias era o dos militantes de junho de 2013 e ensaiou-se uma assembleia para deliberar manifestação ou não; a deliberação foi seguida só por quem concordava.

Na segunda, já foram várias pessoas que paralisaram suas linhas. Formaram-se comissões para paralisar as diversas linhas e o Eixo Anhanguera — o BRT — além de comissões para organizar queima de pneus e paralisação do trânsito. Criou-se uma assembleia para revogar uma representação que estava negociando em nome do protesto sem legitimidade e eleger outra. Essa outra foi rigidamente subordinada a um regime de transparência total na sua comunicação com a polícia e com a gestão do sistema de transporte. Manteve-se o repertório de cantorias e democratismo, mais desenvolvido.

É muito difícil não ver aqui um desenvolvimento, na verdade um aprofundamento e uma radicalização daquela proposta que a gente tentava pôr em prática em 2013 dentro do mesmo sistema de transporte. Talvez não por influência direta, mas por confluência de fatores: militantes que foram de uma pra outra forma de luta, experiência comum contra os mesmos inimigos, o aprendizado da própria polícia de como lidar com o protesto e por aí adiante.

Esse tipo de coisa foi reproduzido em tentativas de organização de bairro. Umas das tentativas foi a Revolta Popular Estudantil do Bandeiras, coletivo fundado por estudantes e trabalhadores que usavam o mesmo terminal de integração do transporte coletivo. Esse pequeno coletivo que realizava saraus, solidarizava com a luta dos professores municipais tinha como sua principal arma sua capacidade de parar o terminal de ônibus a qualquer momento pela proximidade geográfica, ousadia e agilidade da organização. Infelizmente, como se tratava de uma organização de jovens da periferia, foi relativamente fácil intimidar pela repressão aberta e por meio da repressão velada: ameaças de morte, perseguição na escola, com baixíssimo nível de solidariedade das forças de esquerda da cidade que não viam muita importância ou entendiam esse tipo de organização.

Mas antes de chegar nessa parte, cabe lembrar que a pressão popular era tamanha sobre governo e empresas do transporte que eles tiveram que anunciar um Pacto Metropolitano do Transporte Coletivo em 2014, com uma série de melhorias prometidas (quase nenhuma foi cumprida) como uma forma de responder politicamente ao conjunto das manifestações e contestações que o sistema estava sofrendo.

Esse movimento se encerrou justamente quando estava se tornando mais perigoso, que foi quando os motoristas de transporte coletivo começaram a se movimentar ao mesmo tempo que os usuários — esse momento foi registrado pelo coletivo Passa Palavra aqui:

“Um elemento interessante foi essa simultaneidade com os motoristas, mas a forma como essa ação simultânea se deu revela que a construção do poder popular sobre o transporte em seus dois aspectos, o da utilização e da operação, ainda está se dando de forma separada, sem comunicação”.

Essa simultaneidade resultou na quebra de mais de 150 ônibus, alguns incendiados, muitas lojinhas saqueadas. Creio que a aproximação com os motoristas foi a gota d’água que motivou uma dupla operação: ao mesmo tempo a Operação 2,80 que prendeu alguns ativistas da Frente de Luta e acusou-os de organizar toda a quebradeira de ônibus da cidade inteira — essa foi a face pública da repressão; de outro lado uma repressão extremamente mais intensificada nos terminais de ônibus, em que qualquer pessoa que fizesse qualquer protesto passou a sofrer ameaças desproporcionais de prisão ou de morte — esse foi o lado subterrâneo. Tentava-se, assim, quebrar as duas formas de manifestação do movimento de luta do transporte que haviam se mantido firmes enquanto minorias vândalas desde 2013 apesar de tudo. Foi relativamente bem sucedido, por um tempo. As manifestações pararam ou se tornaram muito mais difíceis. A Frente de Luta morreu.

A velha toupeira

Maio de 2015. De manhã só se vê fumaça vindo da região leste de Goiânia. Uma fumaceira inacreditável. O que aconteceu? Foram quinze ônibus quebrados. E a fumaça? Seis ônibus queimados. A polícia se preparou para bloquear a via e tentar impedir os vândalos se bloquear a via novamente. Quem organizou, não se sabe. Mas o motivo todo mundo já conhece e as consequências não se sabia se haveriam: era o espectro que rondava o transporte se manifestando por um breve momento e triunfando. Mas foi uma manifestação pontual que não se repetiu tão cedo e faz anos que o sujeito popular não se coloca de forma incisiva no sistema de transporte coletivo. É importante, no entanto, registrarmos que ele seguiu existindo.

Hoje a passagem de ônibus é R$4,50. Mais que o dobro de quando conquistamos o seu retorno para R$2,70. As questões operacionais, a humilhação, tudo isso continua. Durante a pandemia muitas dessas questões se agravaram. No entanto, a minoria vândala não apareceu em suas variadas manifestações. Cabe perguntar: por quê? Não sei. Mas a resposta a essa pergunta me parece bastante central aos jovens militantes que podem buscar responder às violências sofridas no sistema de transporte hoje em dia. O objetivo desse registro foi mostrar que já soubemos responder e já colocamos essas empresas na defensiva. E mostrar um lado de 2013 que não se reduziu a um protesto cívico, cooptado pela direita. Nossa ruptura e derrota se deu em outro momento, por outros fatores.

--

--